12.8.04

13

A noite fora infernal, as dores de cabeça dilaceravam-lhe o estar. Não se sabia, não se sentia. Latejava em explosão interior, numa escuridão bamboleante, iludida em estrelas minúsculas bailarinas. Sentia-se no mar alto, sem apoio e sem equilíbrio. Estrepitava por dentro. Imaginava garra de águia-real a arrancar-lhe os olhos em alívio de dor. Tinha aprendido a saber suportar com resignação estes ataques furiosos dentro de si, tentando desligar-se do sentir, confiante que passaria o tormento. Visto e revisto, vezes sem conta, de urgência, sem urgência, lá o sossegavam, cefaleias. Isso é grave? enxaqueca, é comum, mais nas mulheres que nos homens, mas comum (pensou vezes várias a recorrer a especialista privado, vivia suficientemente desafogado para se permitir a esse pequeno luxo, mas irritava-o recorrer aos cuidados médicos privados, sentia, erradamente, acreditamos, que entrava num supermercado, infestado de aliciadores a compras não desejadas, e que agora lá vai mais uma análise, na clínica X, um exame que só o Dr, Y faz, e tem que cá vir de quinze em quinze dias, e muito provavelmente vai ter que ser operado, na clínica J pode ser já amanhã, o que acha? Eu nada, sou engenheiro, pensava. No serviço publico, Nacional, diz-se, e de saúde, sublinha-se, sentia-se mais um na fila a mendigar um pouco de atenção e cuidados, num mundo desatento e descuidado. Não, não gostava de Hospitais. Relembrava vezes sem conta, o pacato Dr. João Semana, de livro, escrito por médico é certo, que lera de épocas outras, a transpirar generosidade, e como soubemos já, em livro enorme que não lhe cabia nas pernas, e que acrescentamos agora, que nos esquecemos antes, pesado, mas cheio de gravuras lindas que lhe desviavam a atenção da leitura e o punham a imaginar histórias outras). Resignado à sua sorte, lá ia aguentando as crises, que ultimamente o apoquentavam, porque lhe tiravam horas de trabalho e de sossego. Mesmo assim enchia-se de voluntarismo e lá agarrava no carro e ia. Naquela noite fora diferente, pela intensidade, pela duração e resistência à medicação. Saiu de madrugada para apanhar o ar fresco, sentir a brisa da noite, e estrelas por estrelas sempre preferia as autênticas, que lhe recordavam fantasias. Sentou-se no banco do Jardim, inclinou a cabeça para o céu e esperou que o chão parasse de navegar. Marinheiro de água doce, enjoava na borrasca e foi o que lhe sucedeu, nauseou, até adormecer ao relento. Acordou com a música da rega automática. Oito da manhã. Sentia o corpo dorido, mas já se sentia no olhar, a pressão que lhe arrancara a alma tinha desanuviado, era com se depois de uma tempestade, caísse um nevoeiro, ténue a indicar novo dia, novas cores. Tomou o pequeno-almoço, tomou banho lento, com prazer de sentir a água fria a acordar-lhe o corpo. Não ia trabalhar, pensou. Teresa, aguenta-me as reuniões de coordenação sobre os Parques industriais, ás onze e a reunião com a Socintos, dá continuidade ao diagnóstico que estamos a fazer à empresa, sim de S. João da Madeira, as outras pede à Sofia para desmarcar, Trata-te, sim, Sim vou ver se descanso.
Joaquim sentiu remorsos, afinal já não tinha dores, estava cansado, muito é certo, mas sempre dava para ouvir, para observar o que se discutia. Sim Sofia? a Doutora Teresa já lhe deu o recado? Já sim senhor engenheiro, agora mesmo. Ia agora telefonar para o Dr. …, Não, não desmarque, dentro de uma hora e pouco estou aí. Diga à Doutora Teresa que vou, Mas senhor engenheiro, até já Sofia. Rumou até Aveiro.
Não havia duvidas que algo estava a mudar, há dezoito anos que, dia após dia, fazia com prazer as viagens Coimbra-Aveiro, local onde cresceu profissionalmente, e ao qual se dedicou de corpo e alma. A dedicação ainda existia, mas o corpo, esse começava a pedir mais calma e menores compromissos. Nunca ligou aos sinais, sempre os contrariou, numa relação meio masoquista com a dor, sabia ultrapassá-la e ignorá-la, mas as insónias constantes e as malditas dores de cabeça estavam a minar a sua vontade.