1.8.04

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Ele, inquietou-se com a repentina ausência de Gabriela. Irrequieto, virou o olhar para um Lavrador, cor-trigo de olhos meigos que não tirava a bola do querer. Reprimia, de focinho baixo, o impulso de saltar, de correr para bola branca que num vaivém louco, em instantes já passados, acompanhava o movimento da sua cauda. Ladrou, não o cão, ele. Espicaçava o quatro patas que só pretendia brincadeira. Dirigiu-se agressivo a imitar rosnar com o cio. Enquanto não afastou o cão não descansou. Parecia menino mimado, mal-educado a chamar a atenção dos pais. Passado o momento, com o cão junto aos donos, que não deram conta da provocação, aproximou-se de Gabriela, tirou-lhe o livro e deitou-se por cima, em posição de esmagamento, sem carinho, sem ternura, violenta.
Afastou-o com delicadeza, sentou-se a olhar o mar, a imaginar silêncios. Os momentos de riso embriagado passaram. Sentia-se sufocada de tristeza.
Vou dar um mergulho, disse. Esbelta, a refazer o "carrapito", que lhe empinava o cabelo negro e lhe libertava o pescoço, em imagem egípcia, caminhou quase sem passos na areia e fundiu-se no azul-verde-frio. Ele esperou e depois correu, de passos pesados e sonoros, em grito selvagem, violou as águas em mergulho de espuma, sem ouvir os gemidos das águas que se vontades tivessem, o expulsavam com desprezo e nojo, em onda gigante, de raiva.

Sentado, a limpar o suor quente húmido que se colava à pele, seguia as nuvens de fumo do cachimbo, num fim de tarde junto à piscina do hotel Polana. Mais uma noite e apanharia o avião para Lisboa. Respirava os ares de Maputo, respirava uma nostalgia feliz, na cidade das acácias rubras que lhe lembrava liberdade e sentires únicos. Joaquim fundia-se no aroma do tabaco que se escondia em cinzentos no ar quente. Falava sem emitir sons. Falava-se. Estava cansado, o vaivém de reuniões infindáveis num país que anda devagar, que não acompanha os ritmos do ocidente, produziam um desgaste a que não estava habituado. Faltava-lhe a serenidade para perceber que o intruso era ele, que a ocidentalidade dos costumes, só faziam sentido, no ocidente. Não ali, em terras de África. Ali as cores são vivas. O vermelho é sangue, o amarelo é gira-sol, o rubro é acácia. Ali a verdade é outra e isso sempre foi difícil de entender.
Aguardava o fim do sol, para dar um último mergulho, estava com o Ver distante, com sabores a angústia. Queria ficar ali, naquela cidade, naquele tempo, quase parado. Era ali que ele sentia poder ser útil, poder ser-se útil a ele próprio. Era como se houvesse um pacto, entre ele e a terra. Ele dava-se todo e ela, dava-lhe as cores que procurava, os sentires que desejara. Ali sentia-se criança, sentia-se puro, ali a vida fazia sentido, saía-lhe pelos poros em gotas de sal, era como se o mar saísse de dentro dele e ele fosse vela de barco à procura dos ventos calmos.
Mergulhou e deixou-se deslizar de fresco.
Quem escreve, distraiu-se, não apresentou a personagem, talvez por a conhecer melhor, talvez por já lhe ter dado vida e sentido, noutras fantasias, não escritas, sonhadas. Joaquim, ronda os quarenta e três anos, cabelos negros, pincelados a prata nos pensamentos e não fala sem desenhar. É um tique que o acompanhará na vida. O desenho, escreve-lhe os pensamentos. Não passa sem eles. Procura o equilíbrio. Pensa em demasia, e esquecesse da vida. Homem de negócios claros, procura consensos, aconselha, indica, orienta. Gostam de o ouvir antes de darem um passo. Ele gosta, sente-se útil, afastando assim o seu complexo de não saber o que veio fazer ao Mundo. Procura desesperadamente o seu desígnio. Sofre com a própria alegria, porque quando sorri livre, sente que não merece. Vamos ter que cuidar bem desta personagem.