27.7.04

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Há dias de luz-serena que somos tentados a colher da paisagem que nos envolve o ver, personagens que nos emocionaram e levá-las para casa e inventar-lhes uma história. Não há ponto de encontro, nem destino, nem acaso. Acaso só o facto de termos estado no mesmo cenário, com a mesma luz, a existir o momento…
Preparação da tela

Sentado ao fim de tarde de Julho, também ele no fim, olho o mar, é costume. Há um ambiente de sons, de cores e de profundidade que me levam a olhar o nada, à procura de palavras, em mim. Saboreio pensamentos, muitos deles, nem me contam história, andam por aí a fingir-se gaivotas e apenas se dignam a revelar-me sussurros espaçados em palavras que esqueço.
Estava nesta calma ausência, todo sentidos virado para dentro, quando oiço alegria de risos soltos. Sem olhar, por me encontra ainda, por dentro em concha que se perde no horizonte, tento precisar se a alegria que me invade é de criança ou outra qualquer. É a curiosidade que me faz aproximar do mundo que se movimenta à minha frente. Dançam em jogo de bola dois jovens, ele e ela. Paro-me nas linhas que saltam em bailado, da rapariga que se estica para tocar a bola que lhe esvoaça nas mãos. Movimentos lindos, desenho impossível de fixar, nem retratar, porque transmite alegria, que se reflecte em constante sorriso, de boca jovem que vive o instante, no lança que lança, de bola em dança. Não consigo retirar o ver do corpo, do olhar e dos risos que rasgam o ar que chegam a ofuscar o batuque-pandeireta de mar que se desenrola, no seu vai e vem, em recados de onda que só estando a sós se entendem e não o estou (tenho outras coisas no olhar). Cabelos escuros, pele de verão, pescoço esguio. Salta, dança, a bola é acessório de paisagem (desculpem a repetição, mas o movimento que a acompanha, ritmado de riso com orquestra de mar, só pode ser bailado, sensual, porque feminino, mais bonito que belo, porque harmonia. Tudo se conjuga em imagem que prende os sentidos, todos).
Não consigo realçar o que me comove o sentir, se o cabelo que esvoaça preso-livre, atado em linha esbelta, em cavalo-negro de desenho cubista, se o riso, branco-feliz, se os seios cheios, também eles dançarinos, também eles voadores, junto ao corpo que salta, levantando areia ao encontro de bola, ao vento. Não gosto da palavra seios, muito menos de mama, falta lhes a sensualidade do belo, não porque feias, mas porque lhes falta poesia, porque linguagem demasiado anatómica e leva o pensamento a consultório médico. O que o olhar me devolve para descrever tão graciosa escultura assemelha-se a gotas-vestidas-de-pele-seda-de-julho-quente, que florescem esculpidas no corpo, porque gotas têm a forma perfeita que a natureza lhe deu, porque seda cheira a flor (não sei de onde veio esta associação de sentires, mas se está escrita, é porque foi sentida), macia, na sua firmeza jovem (desenho-os, de longe, sem pensamentos outros que aqueles que a imagem me dá, porque estou maravilhado com o todo que ri sem parar, em alegria estonteante de criança grande, linda, trigueira de se ver). Pinto gazela, chamo-lhe Gabriela (talvez o nome tenha caído de leituras outras, não sei, digamos que sim, porque igualmente bela, igualmente sensual, na ingenuidade de se expor linda, a rir, furacão de riso que me embriaga o sentir). O nome não interessa, mas fica, talvez seja preciso mais tarde para dar nome a quadro, se conseguir artes e jeitos para pôr alegria em cor e desenho.
Ele, bruto, desenquadrado no ver. Exibe-se. Macho de tanga. Não a vê, só a bola. Não tem graça. Lembra-me soldado, desactivado, porque acumula tecido adiposo, de quem se vai desleixando de corpo e alma, se o não é, imita o estilo. Vejo-o fardado, a insultar os passageiros do comboio de fim-de-semana, de lata de cerveja na mão, a contar as suas proezas físicas e sexuais sem respeito por quem o espera, ansiosa, na estação de saída, em saudades de afectos e de corpo. Não lhe dei nome, não vou precisar dele mais tarde, ficará fora do quadro. Não cabe lá dentro (talvez esteja a ser injusto. Ciúme? Não de todo. Apenas estraga a imagem, a poesia do momento e não entremos em fantasias, que sou adepto da serenidade e da lealdade, e tenho afectos outros.) Pergunto-me, o que é que a minha história tem a ver com o facto de estar na praia, contagiado pela beleza de mulher, que teimou em dançar entre mim e o horizonte? Não respondo, porque me sei a mania de me meter onde não sou chamado e esta história não é a minha, eu só a desenho.
Não me canso de olhar, esqueço-me das horas, o tempo (des)existiu, só as gaivotas avisam o por do sol. Não tenho outro remédio, senão apanhar as duas vidas, como quem colhe duas flores, e transforma-las em personagens e levá-las comigo, para um dia, agarrar nelas e inventar-lhes uma história.