7.8.04

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Percorria as ruas que lhe inundavam a infância, a grande cidade, nome que Quim lhe dera em menino, antes de conhecer outras. Era grande, porque se sentia multidão nos passos que lhe dava. Mas o Chiado, as estreitas ruelas do Bairro Alto, a rua das tipografias, as livrarias, era a sua infância alfacinha, que ali estava em recordações de tempos idos. Joaquim lembrava-se dos momentos em que esperava o Pai que dava consultas em posto médico, a idosos e outros. Deambulava duas horas em fim do dia, pelas ruas, em vez de se dedicar aos trabalhos escolares, dentro do carro. Saía e entrava no seu Mundo a olhar. Fixava-se nos livros, nos alfarrabistas. Hábitos e costumes em imitação do Pai que coleccionava raridades livreiras. Hoje, no mesmo espaço, anos muitos depois, procurava livro para oferta. Era costume, seu oferecer livros, sobretudo ao Pai, tarefa difícil, como é fácil perceber quando se quer oferecer peça para colecção a coleccionador cheio de vício. A biblioteca ( atributo demasiado frio, para coleção tão acarinhada e adulada) era uma espécie de sonho, era o castelo no ar de seu Pai, pelo menos era esse o sonho que lhe conhecia. Olhava à distância com grande ternura, este devaneio paterno e sentia-se importante, quando, fruto dos seus passeios, dava novidade a tão grande conhecedor de alfarrábios e lhe dizia cheio de notícia nos olhos; o senhor Silva tem na montra a primeira edição das vindimas de Miguel Torga, ainda não tens pois não Papá?
Joaquim descobrira novidade, livro sobre Lisboa, era aquele. Para oferta? Sim, mas não embrulhe por favor. Não gostava de embrulhar livros, era como pôr um ser vivo dentro de um saco, sufocava por certo. Um livro tem personalidade, não é para ser embrulhado e laçarado. Ainda por cima, gostava de escrever dedicatória, habito também ele herdado, como costume era seu e dele, localizar e datar o local da leitura. Foi com estes pensares que se sentou no Nicola a escrever a dedicatória.
“Cresci a acompanhar a construção do castelo, do qual estas páginas são mais uma pedra do sonho de um homem.
O carácter de um homem está directamente ligado à construção do seu castelo. Olha-se o castelo e lá está o retracto de quem escolheu cada pedra do seu sonho.
Cada livro tem uma alegria, um sabor, um sentimento que nos molda, que nos movimenta os passos no caminho que traçamos. Não me imagino olhar cada uma das perdas do teu castelo sem me localizar, automaticamente, no local e no tempo em que esse sentimento, esse paladar andou ás voltas no teu olhar. Está lá todo o trajecto do teu olhar: Vila Artur de Paiva, tantos de tal…Vila Cabral, tantos de tal; Campo de Ourique, Coimbra, Vila Nova de Cacela, tantos de tal. É o trajecto, é o caminho, é o retracto.
Estas linhas pretendem ter um único objectivo: colocar com afectividade, amor e carinho mais uma pedra no teu castelo, na esperança de que segure a abóbada mais importante do teu sonho. Não é mais um livro sem lugar na prateleira, é mais um olhar do saber ver, do meu Pai. É para reflectir no quanto é importante não nos desfazermos do nosso olhar.
Lembras-te, como noite após noite, lá fomos lendo as Pupilas do Sr. Reitor num livro que não nos cabia nas pernas? Lembras-te certamente, da voz embargada de sentimento com que nos leste, conto após conto, os Bichos do TEU Miguel Torga?
É por tudo isso que te ofereço mais uma pedra para a abóbada mestra do teu castelo e que o risco, que o gatafunho, que o adultero, na tentativa de te pôr a (re)olhar o teu próprio caminho.
Escrito de uma só vez, para uma só pessoa,
Um beijo de parabéns.”
Lisboa, tantos de tal…, assina, fecha o livro e sorri. Vai gostar, pensa.
Bebe o café já frio. Sabia que o Pai, matutava desfazer-se do seu castelo, já não tinha paredes, nem espaço e a vida já lhe pesava os olhos. Joaquim pensava estar a oferecer-lhe a pedra angular do seu castelo.