6.8.04

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O vento embutira o pedaço de asa, escrito, como pele segunda e Gabriela quase que o teve que despegar para o deixar de sentir. Amachucou-o em tamanho de bola, depois de rápido olhar, não fosse coisa outra, mais perigosa, ou suja de nojo, que uma simples folha leve de papel, como o sentir lhe indicava e o ver confirmava. Por momentos a sensação de reduzir em bola a pequena folha, foi de domínio, não que o pensamento a levasse por caminhos destituídos de compaixão, era instinto natural e sensação ténue de Poder, guardar fechado, apertado, em prisão de mão, pedaço branco que lhe voou feito lapa, na perna dorida de sol e praia. Já mais reflectida, colocou-o no bolso da saia de ganga, que lhe delineava o corpo, em formas de mulher (nada mais simples e eficaz para o retrato da imagem que se quer fazer sentir, no olhar de quem lê que definir a beleza das linhas que contornam o corpo que se passeia, de mão esquerda fechada e direita, de dedo gancho pendurado em dedo outro, mindinho, de quem também passeia mas não está ali, como escrever sem mais: formas de mulher). Mais pensada e reflectida, porque Gabriela tem intuição cívica e papel no chão, não é coisa que lhe agrade o olhar, por isso o guarda, para o lagar em local próprio, logo que o aviste. Já o mesmo não se pode dizer do Sr. Presidente de Câmara, ou melhor, do senhor Vereador, porque coisa de papeleiras, nas ruas não é assunto para o Sr. Presidente e pelos vistos , nem Vereador, nem director de serviços. Só o estagiário, não se cansa de emitir sucessivas notas de serviço, com localização e respectivo orçamento, que vê acumular na mesa da Sr.ª Dona, Alice, secretária do Sr. Vereador (donde, com alguma maledicência, percebemos que quem decide a importância das prioridades é a Dona Alice, desculpem a Sr.ª. Dona Alice, haja respeito), quando acompanha o seu director, nas reuniões de quinta-feira, criadas e mantidas religiosamente para fazer pontos de situação. Acredita, o Sr. engenheiro, estagiário compulsivo, que um dia será chamado a dar opinião sobre as ditas papeleiras, lindas de se ver, escolhidas com carinho, (nem demasiado caras, nem porcaria plastificada, apesar de se ter apaixonado por outras, mas essas, Deus meu, nem que fossem prioridades de sua Excelência Maior, desculpem, prioridades das prioridades da Sr.ª Dona Marta, secretária do Senhor Presidente, o seu a seu dono, que não estamos aqui para abocanhar ninguém), processo de concurso preparado ao pormenor e tudo o mais, só faltava mesmo, o bem dito despacho do Sr. Doutor Silveira, distinto Vereador do Ambiente e coisas mais (Ambiente estará sempre em primeiro lugar no enorme rolo de competências de sua Excelência, pois soa bem, é bem, mesmo que como já vimos as prioridades sejam outras e de outros).