2.8.04

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Relaxado, por momentos, pelas águas da piscina, sentou-se no anoitecer. Esquecido de si, retirou bloco de apontamentos da pasta deformada que o acompanha (oferta de mãe, empolada de orgulho, depois das vestes negras rasgadas em embriaguês de ritual, de tradições estudantis) em viagens e afazeres vários (verdadeiro espaço de surpresas desarrumadas e desajustadas de utilidade. Traço de personalidade anárquica, que lhe dá olhares de indiferença da vida, pelo menos daquela que transforma tudo em objecto, em utensílio). Abre-o lento, olha-o, (des)sorrindo, junta lápis-carvão e esboça mãe-filho, entre capim, esfuma-o com os dedos, imagina-lhe cor. Não tem lápis outros, fica-se com a imaginação e o sentir que teve, ao ver derreter-se em evaporação, a imagem de mãe caminhante no meio dos castanhos-amarelos, junto à picada de terra-sangue por onde andou na tarde escaldante, a esquecer memórias.
Lembrou, sim noticia que se escreve e espalha Mundo, em surdina-medo e que o agonia, sobre tráfego de órgãos, de meninos, que nascem já com destino, o de serem só um rim, um coração, ou outro pedaço de carne qualquer. Olha o desenho, o esboço e esboça palavras que lhe saem do sentir, escreve de lágrima, escreve de raiva. Desenho e palavra, em esboço do sentir.
Espreitamos e lemos: Criança negra, jogada fora, em picada escura, de pó, cega, perdida. Sem lágrima, pedaços de corpo, morto, para outro, esquecida, sem dó. Dor ao longe, fora de vista. Migalha de vida, criança negra, caída.
Fecha o caderno de apontamentos, já tem cores e titulo para o seu quadro, Migalhas de Vida.
Não lhe apetece sair, nem comer, refresca-se com tragos contínuos em água tónica e sem passar pelo grupo de empresários que coordena vai deitar-se. Do quarto, ao telefone, fala com a sua colaboradora, dá-lhe indicações sobre a partida, e deita-se. Sem saber razão, mistura lágrima com suor.