5.8.04

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Fazia refeições frugais, sobretudo à noite, costume que acentuava no estio. Fruta variada e mesmo que lhe dissessem que não combinava, que lhe fazia mal, não prescindia dos sabores aleitados de um queijo da serra. Degustava-o sem pão derretendo as pequenas colheres de néctar pastorício no palato, sem tempo. Gaspar tinha esse gosto. Nos frios do Inverno uma malga de leite bem quente migalhada de cereais, aconchegavam o sono e os sonhos .Era ele que adquiria os seus queijos, em ritual obrigatório nas suas visitas prolongadas na Serra, na sua Serra. Gostava de sentir os horizontes circulares, com princípio e fim em abraços de olhar e lá, nos céus límpidos e frescos, havia pequenos lugares de brisa gelada que tornava possível esse querer, onde se envolvia com o olhar em plena espiritualidade perdendo-se do tempo e do espaço, como que se estivesse a carregar as suas fontes de vida (nunca revelou e provavelmente é abuso deste contador, que interfere em demasia e não se limita à narração, mas a verdade é que desconfia que os pedacitos do néctar das ovelhas, frutados de saberes de outros mestres, saboreados, ás colheres, é vida concentrada que lhe alimenta o existir, em forma de elixir).
Já não ia à praia há uma semana, da varanda tinha paisagem, cheiro e cores suficientes para respirar o ambiente como se estivesse presente, apetecia-lhe sim, andar e resolveu-se. Vestiu agasalho ligeiro, que humidade de sal, enferruja ossadas e as suas ultimamente, apesar do sol e do verão, davam mostras de se quererem fazer sentir. Andar obrigava-as a calar, mas o objectivo era outro, era ver pessoas, senti-las no seu viver, conversas aqui, sons de acolá, gritos, discussões, risos e alegrias várias. O pulsar do ambiente que lhe envolvia o andar fotografava-lhe o viver das gentes que se formigavam ao redor, gentes sem nome, nem idade, mas suficientemente próximas, para as sentir como suas, como a serra, como a praia, como a cidade. Foi e misturou-se.
De longe ouvia o farol em apitos espaçados, não admirava a dor que sentia no corpo. A névoa ligeira dava as boas noites e tonalidades desfocadas, ao luar.
Andou de mãos atrás das costas. Fazia pequenas pausas para se girar sob o mundo que se movimentava sem ele. Sorria, sempre muito, em tons de aguarela, água-cor de suavidade extrema. Girava sobre si e via e sorria. Vezes, tinha vontade de se transformar em carrossel e girar, girar, até sentir desequilíbrio, mas idade de Mestre pede outros recatos, contentava-se em sentir-se centro de giração, umbigo do Mundo que os seus olhos alcançavam.
Acabada a vontade, procurou mesa, não que estivesse cansado, mas era momento de parar, tivera pensamento e quando acontecia tinha que parar e gatafunhar as letras que faziam o favor de se juntar em forma de sentir. Juntava pensamentos, era passatempo, tal como o era fazer saltitar seixos redondos e delgados no mar, no seu (temos que dar um desconto a Gaspar e esta mania que ele começa a demonstrar de ser tudo dele, a serra, a praia, a cidade, as gentes, já vimos serem dele, as ovelhas, não vimos, porque o narrador achou exagero e não contou como devia, agora também o Mar. Não julguem o Mestre e não liguem ao narrador).
Descoberta mesa, na esplanada, sentou-se, com boas noites às cercanias, que indiferente, não se deu a vontades de sorrir, ele sim, por debaixo do seu bigode branco-branco. Boa-noite José (sabia-lhe nome), o costume, tu sabes, não demasiado quente, sim tília por favor, olha, José, trás um papelito, um guardanapo de papel serve e caneta, obrigado José.
Esperou quase ausente. Aqui está o seu cházinho, senhor Gaspar e os seus guardanapos e cá está a sua canetinha, senhor Gaspar, dois euros. Para pagar amanhã, não é? Sim José, esqueço-me sempre do raio da carteira, não há meio de me habituar, Deus te pague José. Amanhã, senhor Gaspar, Amanhã!
Olhou caneta, como pintor afaga os seus pincéis e gravou em papel semi-transparente, semi-cor de mesa, neste caso verde, que não interessa para nada.
Escreveu, "Procura a melhor forma de resistires à tentação de veres apenas com os teus olhos, para não caíres na ilusão de te sentires feliz em vez de o seres…"
Releu, deixou ficar, parecia-lhe bem, não propriamente a construção da frase, nunca ligou a purezas gramaticais. Sabia que quando se punha a pintar, também vezes sem conta não olhava para as proporções das formas, deformava-as com intenção e intimidade.
Estava neste auto convencimento, quando, brisa mais forte lhe levou papel, aquele e todos os outros que José tinha trazido. Leve, mesmo escrito com palavras do Mestre, fez-se gaivota e colou-se nas pernas de rapariga de dedo dado, em espécie de gancho, que passeava com o companheiro, que em vez de mão lhe dava a míngua de um dedo, o mais pequeno que tinha.
Gabriela, em gesto reflexo, apanhou o papel que se colou à pele…
Gaspar encolheu os ombros, sorriu e resignou-se em não levar os pensamentos consigo. Estes não se iriam juntar ao seu caderno de argolas, em letras desenhadas com caneta de aparo. Fugiram juntos com o papel-gaivota.