11.8.04

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Andava ás voltas em burocracias. Sempre pensou que voltar a estudar, era apenas questão de vontade. Ilusão. A esticar em sentido contrário havia uma montanha de inutilidades a consumir tempo e entusiasmo. Equivalências para aqui, capitalizações para acolá, e porque a menina tem notas para medicina; mas não o que eu quero mesmo é aprender terapia da fala, sonho de menina; ó filha que desperdício; mas minha senhora, posso, ou não posso; pode sim minha senhora, aqui estão os impressos, não se esqueça das vacinas. (País estranho este que tinha quatro das maiores riquezas do Mundo conhecido, Mar, Floresta, Luz e Homens, e tratava tão mal cada uma. A riqueza de um pais devia ser avaliada pelas reservas dos seus recursos endógenos. Palavra exótica para uma leitura despreocupada, estamos a falar de Gabriela, o Joaquim é que anda com manias de mudar o mundo, Gabriela neste momento da história só quer completar o décimo segundo ano, para poder ser útil e dedicar-se à terapia da fala, não anda a arrastar modelos sociais e de desenvolvimento).
Estava determinada. Tinha todo o movimento de ir, no olhar e foi. Em Setembro próximo lá estaria no ensino nocturno. Sentia-se incompreensivelmente feliz. Dava conta de uma espécie de dor aguda, nunca se apercebera que a felicidade podia ser comparada a uma dor fina, de prazer. Há catorze anos que interrompera o secundário. Teve que ajudar a família paterna na fábrica, (depois da morte da mãe Isaura, por exaustão, acreditava Gabriela, aproximara-se do pai, que com o tempo espaçava a instabilidade com momentos mais calmos, que encorajavam a esperança), pequena empresa de cerâmica, familiar, de início, que foi crescendo à medida das encomendas, sem se cuidar que iam vendendo, a faiança abaixo do custo, entusiasmados com as quantidades, e letra atrás de letra lá se foi afundado a pequena oficina, que exigiu o empenho e suor de todos, mas barco com rombo é pesado, não navega, e nestas alturas o socorro anda distraído ou ajuda o lastro. O mestre do forno esquecera rotinas de segurança e em acidente estúpido acabou com a vida, dele e da fábrica. Moribunda que ia, não aguentou a tempestade, afundou esperanças e futuro de família inteira. Foi à luta, arregaçou as mangas em acto decidido, enrolou cabelo em rabo-de-cavalo e foi secretariar empresa de fornecedor, que estendeu a mão, era amigo de infâncias perdidas, do Pai, e tio, jogavam à bisca lambida todos os sábados e era camarada de caça, sem contar com os medos partilhados em terras da Guiné, escondidos no mato, a rezar, com promessas, a nossa Senhora de Fátima, que a peluda chegasse e os devolvesse inteiros de corpo, já que o espírito, esse ficara mutilado para sempre. Nunca mais foram os mesmos, só a amizade perdurou, e lá estava ele a proteger a retaguarda, de sentidos alerta, que os inimigos eram muitos e ameaçavam privações e miséria envergonhada.
Tempos de crise, são tempos de crise, os caulinos vinham de países outros, em pó, misturados, prontos a usar, mais baratos, os vidrados, meu Deus, nem é bom falar nisso, e também ele, sem acidente, mas de morte empresarial, lá pôs cadeado nos portões do armazém, à espera que a segurança Social, o Fisco e os bancos lhe tomassem conta do ganha-pão, que os sonhos, já tinham levado e não consta que tivessem valor contabilístico. Catorze anos de pausa na vida de Gabriela, não fossem as leituras, teria embrutecido, perdido a alegria e o sorriso.
Pegou em pequeno livro de poemas e foi passear, respirar o fim de tarde, ouvir a brisa por entre as folhas das árvores do Jardim Botânico. Era o seu refúgio. Ali passava parte dos seu dias sem afazeres, a ler e a desenhar futuro. A sensação de voo azul, ainda a fazia estremecer. Relembrava, verão, inchada de orgulho, das suas notas de liceu, a imaginar-se a viver. O tempo tinha parado, recomeçara-se naquela tarde de fim de férias. Pareceria viver um conto de fadas, até o seu Jardim tinha uma luz e uma sonoridade diferente, Via as setas luz, matizadas entre o branco e o translúcido, em vitrais de oração, a atravessar as copas frescas das árvores centenárias, num colorido mágico, sem sombras mas com penumbras, místicas, fantásticas, ao olhar. Fechava os olhos, embebia o fresco e sentia-se poema vivo. A fome, regressou-a a casa, recheada de destino!