8.8.04

10

Era tarefa que não gostava, tratar de roupa, engomar roupa para sermos mais precisos, mas querendo ser mesmo exactos, todo o envolvimento associado ao acto do lavar a roupa, deixava Gabriela indisposta de sentires. Angustias. Não lhe sabia razão. Talvez tempos difíceis em que a mãe lavava nas águas do Mondego, as roupas dos senhores doutores, estudantes é certo, mas já doutores em cidade que não aprendeu ainda a viver sem eles. Com o pai sempre ausente, a Mãe Isaura, sustentara a custo de varizes cáusticas e outros desgastes lampos, a subsistência e os estudos de Gabriela. Felizmente, filha única, coisa quase rara em meios que tinham na prol, garantias de ajuda em trabalhos vários. A mãe lavava roupa nas águas do bazófia. Agora não que os senhores doutores são mais finos, já vem de carro e mordomias outras. Sinais dos tempos. Mas ela adorava as idas ao Mondego, ao seu Rio e gostava de ajudar a mãe no pisa da roupa, no pendurar camisas, cuecas e lençóis, num jogo de colorido que lhe soltava o riso e a maravilhava. Mas o que gostava mesmo, era de subir de mão dada à saia da Mãe, o Quebra-costas, com as cestas de vime, primeiro e alguidares de plástico, depois e entregar as roupas aos rapazes, senhores doutores. Estavam sempre bem dispostos e elas eram sempre uma boa notícia, não conhecia nenhum que não a esperasse com ansiedade. Tempos de crise, em que a roupa era pouca e faltava sempre aos jovens que se queriam apinocar para uma noite de amores, porque para as aulas, o suor era sinal de muito estudo, de muito fumo, de muita concentração e noite a fio perdidas em sebentas com pouco sebo, ilusões de enganos, porque jovem esquece sempre que Mestre o já foi.
Ficamos perplexos, porque a imagem que temos de Gabriela, é de rapariga adulta, mas jovem, pela alegria e pela sensualidade ingénua que o seu corpo aparenta, mas o relato da hipótese da angústia do lavar de roupa, e as memórias confessadas de Gabriela, leva-nos, a recuar trinta a trinta e cinco anos (as lavadeiras ainda as há, mas os estudantes, como vimos já não tem a empatia de outros tempos e hoje a actividade é triste e descolorida), pelo que deduzimos que Gabriela andará por essa idade, mas esperemos outras confissões para afinar a idade (há aqui uma manifesta curiosidade em saber a idade e nome de cada um, que não somos indiferentes e gostamos de saber tudo das nossa personagens, para lhes avaliarmos a maturidade, certos bem se vê que a maturidade não se avalia por estes parâmetros, mas é um primeiro esboço).
Gabriela tirava a roupa da máquina, queria ter a roupa toda lavada e engomada, para fazer as malas. As férias terminaram. Não levava saudades, tirando a praia, as leituras e algumas refeições em restaurantes modestos, foram quinze dias de silêncios. Descansara, era esse o objectivo. Mas já tinha saudades dos colegas, dos amigos, do seu computador, da sua rotina, da sua cidade (parece o nosso Mestre Gaspar, a sua isto, a sua aquilo, afinal todos temos muitas coisas nossas).
Colocou a roupa no alguidar cor de vinho e foi até à varanda do apartamento alugado, valia pela vista do Mar, do alto da serra. Quase se avistava fim, pensava.
Maquinalmente, de molas presas no sorriso, colocou uma a uma, as peças de roupa. Sentou-se a respirar a noite e o mar que se passeavam no escuro.
Acordou cedo, dormira sem se lembrar. Era dia de partida. Ia para perto, de Figueira a Coimbra era um quase nada, mas gostava de chegar e iludir-se que ainda tinha uma tarde de férias. Apanhou a roupa já seca, apanhou peça por peça, decidiu adiar para Coimbra o passar a ferro-vapor a sua roupa. Na saia de ganga, ao dobrar, sentiu saliência junto ao bolso. Intrigada (e esquecida, dizemos nós que acompanhámos a acção), mete dedos finos e retira um emaçado de papel fino. Transformando os dedos em pinça, e o olhar em curiosidade, despega as pequenas e frágeis pontas do papel engelhado. Alisa-o e espanta-se. Revela-se papel escrito mas todo desbotado em azuis. O desfazer da tinta, tinha no entanto tomado forma de gaivota-azul. A imagem tocou-lhe todos os sentidos, era linda a gaivota, junto à asa, ou melhor à mancha que desenhava a asa, conseguia-se ler a custo pequena palavra, feliz. Aqueceu-se em bater de coração. Olhou o mar que se estendia em horizonte, dentro do seu ver, emocionado, e sentiu-se.
Sem saber explicar, sentiu-se crescer. Há momentos destes na vida de cada um que anda atento. Assistimos a um virar de página nas nossas vidas, uma porta aberta que fechou outra. Assim se experimentou Gabriela, marcando o instante, com um grande voo de alma. Era uma gaivota azul, à procura do seu Horizonte. Sabia, naquele momento que iria tomar uma decisão sobre si e sobre a sua vida. Afinal, tinham sido as melhores férias da sua vida.