9.8.04

11

Matizes em azuis-mar e outros que se perderam na paleta.

Joaquim estava nervoso, o dia correra-lhe estupidamente mal. Sentia-se cansado e impotente. Sabia que lidar com decisores políticos era tarefa que exigia tacto e paciência, e que as decisões eram na maioria das vezes irracionais do ponto de vista do bom senso. Sabia também, que havia intervenientes no processo de decisão que tinham um rasgo e uma visão muito superior aos outros pelo simples facto de terem convicções. Infelizmente estava cada vez mais desanimado, pois nos últimos anos, as coisas andavam a piorar. Sempre odiou populismos exacerbados, compreendia e aceitava que a politica tinha que ser embrulhada e mediatizada, mas não podia nem devia ser pirosa, esvaída de sentido e de objectivos que não a simples promoção individual ou de interesses. Havia uma clara e acentuada indiferença das elites para a causa pública. Acreditava que a Democracia só podia subsistir, enquanto essas elites intelectuais se dedicassem de corpo e alma aos desígnios do País. Acostumado a ser chamado a dar a sua opinião, fosse qual fosse a orientação politica do governante, empenhava-se a estudar os dossiers com todo o empenho e capacidade que tinha. Sabia-se com bom senso, e descobriu que tê-lo, era caminho andado para produzir uma linha de orientação estratégica com cabeça tronco e membros, com argumentos suficientes para defende-la. Tinha a vantagem, herdada de muitos olhares, de saber colocar-se no olhar de cada um e ver os assuntos nas várias perspectivas, por vários pontos de fuga. Andava desanimado com o País, não era daqueles que estava sempre a maldizer, a terra onde aprendera a ser do Mundo e a portugalidade de cada um, porque tinha orgulho em sê-lo, mas pressentia com cada vez maior convicção que a classe que orientava os seus destinos e desígnios, era refugo de refugo e isso incomodava-o e entristecia-o.
O Secretário de Estado chamara-o para dar parecer sobre uma decisão que pretendiam tomar sobre a funcionalidade de um gabinete estratégico e de planeamento económico. Dedicou-se à causa de corpo e alma, sem horas, horas a fio. Mobilizou a sua equipa. Fazia-o de forma voluntária, nunca aceitou qualquer remuneração por este tipo de requisição. Fazia-o por gosto, era uma forma discreta de servir a causa pública. Não gostava de holofotes nem de elogios públicos, o convite para participar numa decisão era suficiente para se sentir útil.
Orgulhoso com o trabalho produzido, olhava-se vaidoso, fizera-o com uma convicção fora do habitual.
Muito Bom dia, Senhor Engenheiro, sempre pontual, já estão todos à sua espera, sorriu Ana, Secretária de sua Excelência, Aninhas para os mais usuais naqueles espaços. Joaquim sorriu com vontade, sempre foi pontual, era uma provocação, ele e ela sabiam-no. Costumavam trocar confianças nas esperas. Joaquim tinha uma arte natural de ouvir, e sem saber como nem porquê era normal abrirem-se em confidências.
É tradição nossa chegar atrasado a reuniões de trabalho, mas estas eram especiais, todos vinham mais cedo, era a oportunidade para mostrar intimidades com sua Excelência, pedir um favor, ou simplesmente mostrar-se, sair e deixar o assessor na reunião (não queremos ser difamadores, e não nos atrevermos a pensar que neste caso ganham os dois, o que saiu, porque se mostrou e ganhou ajudas de custo para gastar em cd’s e dvd’s na Fnac, (há que poupar), e o assessor porque mostra competência para assumir o lugar do outro, quando o outro tomar o lugar a quem se mostrou, e ajudas de custo, que os filhos são muitos e a educação está cara. Não, não difamemos até porque o autor ainda não se precaveu em afirmar que qualquer semelhança com personagens da vida real é pura coincidência, não o disse. Não vá o acaso juntar-se à história, mais vale antever. Afirmemos então: Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. O autor afirma-o e agradece ao Mestre Galileu Galilei todo o legado deixado). Entrou no Gabinete de Sua Excelência, depois de um café e uma água, trazidas, com o sorriso rasgado de Aninhas. Entrou na sala, com fumos vários, cigarrilhas cubanas, porto-riquenhas, açorianas, cigarros, muitos, com taxa e sem taxa, aos quais juntou sem afinidade o seu aromático e fiel, cachimbo. Era preciso ter pulmão, e não usar lentes de contacto!
A reunião tinha que ser rápida, faltava uma hora, para o discurso de sua Excelência, na III Conferência de Desenvolvimento Económico e Sustentável, promovido pela Confederação dos Empresários. Era preciso dar sinais claros que o governo estava atento à crise e que aprendendo com a iniciativa privada e dinâmica que o tecido empresarial tem dado mostras inequívocas, o governo decidiu criar um gabinete de apoio estratégico…
O Discurso estava feito, a decisão estava tomada, o facto de Joaquim ter trabalhado horas sem fim, num documento que demonstrava que essas competências já existiam, e que o novo gabinete não iria trazer mais valia nenhuma, não servia para nada, a não ser despesa, nem o leram, nem lhe deram oportunidade para o explicar, faltava uma hora para sua Excelência fazer o discurso de abertura, só se ouvia os parabéns de felicitações pela decisão tomada, que outros levaram anos a decidir, que sim, que era um instrumento importantíssimo para o desenvolvimento acelerado do país, que a oposição iria ficar calada e sorumbática, por em dois meses se ter tomado tão importante decisão, parabéns redobrados pela clarividência e pela oportunidade, tudo isto repetido com sua Excelência, vezes sem fim, vincando o acto com vénias e imagine-se com aplausos, tímidos primeiro e esfusiantes depois. Foi de mais, para o pacato Joaquim. Deixou-se ficar na sala, sentado a olhar o fumo, o dele, até ficar sozinho. Agarrou no telefone, mostrando conhecer rotinas e procedimentos, pediu à Aninhas, Traga-me por favor mais um cafezinho, uma água, umas folhas A4 e um envelope, Levo já Senhor Engenheiro, levo já, Obrigado.
Naquele momento sentiu uma paz infinita. Sentia-se livre porque não se sentia mercenário, nem dependente de favores, não o queriam ouvir, melhor para ele, escreveu:
Excelentíssimo Senhor Doutor,
Pinto-te macaco em cores de papagaio, Tu que te vestes de gravata e fato apropriado e te agachas em aplausos submissos e sorrisos cínicos, Tu que te vergas, Tu que te engasgas com Sua Excelência em salamaleques ordinários e medrosos, Agonias-me em cheiros de dejecto que se espalha no ar, em nuvem contaminada de cobardia. Tu que te levantas em aplausos à passagem de Sua Excelência Maior e reflectes vermelhos de vergonha, mas sem ela. Riu-me de Ti e Dele em gargalhada aberta, que se abafa nos aplausos, mas riu, e oiço-me, e mostro-me, e vês-me, e olhas, primata com cores de chimpanzé. Discursas de boca cheia, mas só tu te ouves, e sentes-te César, e vês-te no coliseu de polegar virado, armado em matador, Tu que decides, Tu que te envolves nas gravatas de alfaiate, e falas de povo, e falas para macacos que te aplaudem, Peço-te, humildemente, tem vergonha, cala-te, olha-te ao espelho e vê que esse papagaios não voam, Exige andorinhas, exige gaivotas, exige o que quiseres, mas macacos não, papagaios não que cheiram mal, cheiram a podre, e as palmas são patéticas e as palavras são iguais às tuas, Tem coragem, e envolve-te com quem te diz não, tem vergonha dos sim excelência, que são cínicos, e só tu não vês. Olha nos olhos e diz o que pensas, não te engasgues em compromissos que não sentes e não queres. Segue o teu caminho, porque se não é o teu, deixa a tarefa para quem o saiba, Autentico, sem fingimentos, sem fugas, mal ou bem, mas Verdadeiro.
Um abraço, amigo e franco, Quim
Dobrou a folha manuscrita e pediu à Doutora Ana que fizesse o favor de entregar a carta a sua Excelência, e muito bom dia, e até a um outro dia, beijinhos à KIKI (Filha que estava sempre nas bocas de Aninhas e que não escondia as suas tropelias em confissões repetidas, mas vaidosas, com se a asneira tivesse direito a aplausos)
Sentia pena do amigo, viveram intensamente a vida académica de Coimbra, lutaram juntos pela reposição das tradições na década de oitenta, tinham sido sonhadores juntos. Estava mudado, transformado em marioneta. Questionava-se, em angústia, o como era possível, o amigo, pessoa inteligente, que o era, deixar-se corromper intelectualmente ao ponto de se reflectir macaco, peão de decisões feitas sem sentido. O Mundo estava a mudar e Joaquim duvidava ser capaz de se adaptar. Estava triste. Cansado. Rumou até ao Estádio Nacional, vestiu o fato de treino que trazia sempre no carro e correu, até não se sentir.