20.8.04

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Chegou a altura de uma pequena pausa, na história que vai desenrolando as vidas de Gabriela, Joaquim e Gaspar. O que se contar a seguir influenciará em definitivo os trilhos que seguem as personagens. Sabemos, ou adivinhamos que Joaquim é homem reservado, não tem vagares nem vontades de travar conhecimentos, o que encaminharia a história da visita à exposição do Mestre, a ser uma mera visita que Joaquim levaria nos olhos até Coimbra. Gabriela, entrou meio escondida pelo chapéu-de-chuva, apenas ficou no ouvido do Joaquim o timbre jovem mas altivo, Vim de Coimbra.
Gaspar, descansou férias na mesma praia que Gabriela. Afastado, é certo, mas em noite de estrelas, escrevera papel, que o vento levou em forma de destino, ao olhar de Gabriela.
Quando se cruzam viveres, desta forma casuística, não há graus de liberdade suficientemente desconexos que não obriguem o nascer de um instante, o que fazem desse momento, as personagens, já é um problema só delas.

Deixemos o instante acontecer, porque o tempo que cada traço demorou a redesenhar-se nos olhos de Joaquim, não foi suficiente para evitar o encontro. Gabriela não conseguia desunir-se do desenho que tinha diante. Há poemas que não se escrevem, desenham-se, depois, com sensibilidade, ou ilusão descrevem-se com emoção. Este que Gabriela e Joaquim viam, fixos, que os transformava, é quase paixão. É linha única, de homem, talvez rapaz, que brinca, que joga. A linha é precisa que o desenhador não é qualquer, (por isso eles que o vêem, imaginam que o que se joga, não é só brincadeira, é coisas outras, mais profundas, só dele, que sentiu). Dentro da forma, a dar-lhe cor e sorriso, no mesmo corpo, nas mesmas linhas, está mulher, talvez menina. O poema, não está na linha, está na sombra, suave e colorida do abraço da mulher.
Lindo não acha? Questionou Gabriela sem se voltar. Joaquim quase não ouvia, porque estava na verdade ausente. Não conhecia La raqueta Japonesa, estava a perguntar-se como era possível, nunca ter olhado aquele desenho da fase jovem do Mestre. Ao eco do lindo, sublinhava, em surdina interior, Belo. A harmonia comovia-o, fosse ela obra da natureza ou da mesma, mas por mão de homem, e estava a olhar para a mais perfeita harmonia que um traço desenhado poderia transmitir (questionava-se vezes sem conta, o nosso Joaquim, nas suas corridas junto ao Rio, até que ponto a intervenção do homem seria ou não Natural. Não gostava muito do conceito artificial, pois considerava-se, ele próprio, produto da natureza. Só quando, em ambientes mais agressivos que uma deleitosa corrida emoldurada de verdes, assistia a barbaridades humanóides, se convencia que algo de errado havia, na relação da sua espécie com o meio que o abraçava de prazeres).
Não acha? Não tinha ainda terminado a interrogativa e em gesto de fazer balançar o cabelo negro em roda de saia de bailarina, levou, inocente, perfume que fixou a atenção Joaquim, no som e na imagem. Extraordinariamente mais bela, porque em primeiro plano, estavam uns olhos negros, que fumegavam brilho, em segundo o quadro, e em terceiro, porque só o vira depois, reflexo de Gaspar no vidro do desenho, em sorriso escondido.
No momento que ia libertara resposta, outra entrou-lhe em tons de dúvida, Doutor!? Estava habituado a chamarem-lhe Doutor, nos tempos de estudante, que quase já esquecera e na sua vida profissional, pois desempenhava funções de gestão, cargo normalmente associado a doutores, mas comummente exercido por engenheiros, por isso largou um receoso, Sim?
É o menino Quim , não é ?
Era de mais, que raio de rapariga era aquela, quase miúda, aos olhos de Joaquim, a chamar-lhe de menino? e Quim? Menino Quim? Olhou-a em angústia. Que olhos negros lindos, pensou, para sem saber porquê, relembrar desabafo da Mila, contabilista da empresa, (podemos aparecer nuas, que o senhor engenheiro nem dá por nós, mas se estamos com algum problema, é o primeiro a perguntar o que temos. Olhe senhor engenheiro, gostamos que nos diga, o penteado fica-lhe bem, ou essa saia fica-lhe a matar, que diabo senhor engenheiro, acorde para a vida!). Desculpe, mas não estou a ver de onde nos conhecemos. Não vivia, em Coimbra, no Quebra-costas? Sim, em estudante, sim. Olho-a. Os olhos negros, sim conhecia aqueles olhos, noutro corpo, sim, de menina, sim, de mão dada na saia da dona Isaura, lavadeira de suas roupas. Gabi? Sim senhor Doutor, sou a Gabi.

E o instante, este instante, porque haverá outros, deu-se. Tinha acontecido, começado, discreto, difuso há mais de vinte anos. Subtilezas do existir que ninguém prestou atenção, mas que ficaram guardadas nas memórias dos dois, e que emergiram ao entrelaçar de olhares Quantos acasos, se deram no consumo do Tempo, desde o desenhar do quadro, ainda os dois não existiam no ver de ninguém, que deu a Gabriela o tempo que não era para ela; ao acto de decidir organizar a dita exposição; ao Joaquim ler em jornal, que dia último para a exposição, era este que viviam; ao Gabriela, ter decidido conhecer o autor do Começar; quantos momentos dispersos, desconexos, aconteceram para que o instante se desse?