17.8.04

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Entre o conforto do táxi e o envolver-se na multidão, optou por seguir-se nos passos e deixar-se ir com o movimento, mimetisando-se nos cheiros, nos olhares, nas vidas de todos os que com ele se embalavam nos subterrâneos da Cidade Grande.
Movimentou-se na multidão, em pedaço dela. Tinha tempo…
Inventou uma história para cada uma das vidas que se isolavam do olhar e o escondiam no chão que se orientava em carris infindos, em movimentos rápidos como quem transporta destinos.
Sentiu-se desconfortado com a frieza do Ver de cada um e não resistiu em vasculhar imagens de outros tempos, de outras paragens, de outras emoções e calhou-lhe na sorte a recordação de uma menina de sorriso atrevido, em terras de Africa que o fazia corar com o olhar e deixou-se navegar. Tinha tempo…
Quando voltou à multidão, a saída estava algures entretida com os passos apressados de outros, mas não os seus. Saiu a correr em paragem próxima e correu desesperado para um táxi. Olhou relógio minuto a minuto, transpirando cada segundo que lhe corria nas veias. Estava quase a fechar a exposição

Gabriela estava extasiada, tinha-se perdido nas cores e nas linhas desenhadas em continuo. Percorrera todas as linhas, como que a imitar o traço do Mestre. Também ela gostava de deixar deslizar a mão e o lápis na textura rugosa do papel, por isso olhava como aprendiz, ávida de saber. Perdera-se nas cores e nas horas. O metro nunca mais chegava, sentia-se a empurrar a carruagem e em simultâneo a puxar o tempo, para que ele não lhe fugisse.

Chovia, saiu do metro de chapéu baixo a proteger-se, ia em pressa, encurvada para diante, a furar o vento…

Guarde o troco, agradecia recibo, muito boa tarde e obrigado. Descera devagar, gostava da chuva, de senti-la. Fechara os olhos e virado para os cinzentos, respirava como que sorvesse o mundo. Olhou e viu silhuetas, uma, a fechar a porta, outra em corrida, escondida em chapéu-de-chuva que se vergava. Apressou-se.

Desculpe, não vai fechar já pois não? Meus filhos, disse sem se voltar, com sorriso escondido, porque de costas, apercebendo-se que atrás de si se interrogavam, ele e ela, está na minha hora, Mas vim de Coimbra para ver o Mestre, rogou em voz trémula, Gabriela, que subitamente sentiu arrepio de frio. Soara-lhe bem a entoação, não de súplica, mas a forma como a palavra Mestre encheu a boca antes de ouvida. Entrem meus filhos, não tenho pressa, estava a ver que não vinham,… hoje,… visitantes ( disse-o, com pausas, quase hesitações, mas de sorriso, branco de profundo brilho no olhar) . Joaquim calou-se, era para sublinhar, Sim também eu vim de Coimbra, Aveiro para ser preciso, mas vinha sempre de Coimbra, pois era lá que dormia. Acrescentou, Ficamos muito gratos pela sua boa vontade. Agradeceu pelos dois, se estivesse atento, teria reparado que fora indelicado para Gabriela, que não gostava que falassem por ela. Pedia, só um favor, indicava-me a casa de banho, senhor..., senhor, Gaspar, lera a placa de funcionário, que em letras, dourado-gasto, se penduravam em placa discreta, Preciso de me limpar da chuva, Com certeza meu filho, com certeza, segunda porta à esquerda, Obrigado senhor Gaspar. A ida à casa de banho tinha dois objectivos, limpar efectivamente a água que lhe escorria, e permitir que a visitante se adiantasse no olhar. Não gostava de ver uma exposição em paralelo com outros olhos, ficava inibido e não fruía em plenitude o quadro que olhava. Cinco minutos depois sentia-se pronto para a degustação do seu Mestre preferido.