16.8.04

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Pensou que seria mais fácil agarraras suas decisões. O trabalho de secretaria na Clínica, fazia-se bem, dava para ir estudando nas horas mortas, mas criar rotinas para as aulas à noite foi difícil. Aborrecia-se, o que lhe provocava um sono incontrolável. Vezes, fora literalmente acordada ou pelos colegas ou pela própria professora. O segundo período fora o pior de todos. Sempre gostou do Inverno, porque o vivia em casa, mas andar na rua o dia todo, e em especial no frio do escuro, tornava-a melancólica, e uma necessidade maior de companhia. Tinha terminado com o companheiro no verão último, mas sentia, sobretudo nos dias sombrios, a falta de um carinho, de se enroscar em corpo quente que a acariciasse ao som da chuva. Não era a relação física que lhe trazia a nostalgia do amor, era o próprio amor, o carinho, as longas conversas sobre o futuro, os projectos, e o abraço, gostava de se sentir abraçada, sentia-se confiante, sem medos, envolta num abraço, acompanhado de beijos suaves no pescoço e em sussurros atrás das orelhas. Tinha necessidade de fazer parte inteira da vida de alguém.
Pediu o dia na Clínica, queria muito ir ver uma exposição de Almada Negreiros, em Lisboa, que encerrava no dia seguinte, só lhe deram hipótese de trocar como a sua própria folga, não hesitou. Tinha uma vaga ideia do Mestre, como escritor, sempre que pensava nele soltavam-se um Morra Dantas, morra pim. Sabia-o mestre de desenho, cores e de coisas outras, mas só tinha lido na escola, o Manifesto, ainda tentou ler a Cena do ódio, mas ficara-se na Alma do Borgias a penar. Falavam-lhe tanto do Mestre, que ia aproveitar, dava um pulo na Gare Marítima de Alcantra e na de Rocha do Conde de Óbidos, para ver os frescos, (recordava-se de ver em poster num quarto de um estudante no Quebra Costas, quando, junto com a mãe fazia a entrega dos engomados, e de ficar à espreita, fixada nos malabaristas. Recordava-se dos malabaristas, e queria muito vê-los), um salto à Fnac, para ler um pouco de poesia, talvez até a cena do Ódio ou outro poema do artista, corria até à Gulbenkian para ver o Começar, e ao fim da tarde fugia até ao palácio de Galveias, onde decorria a exposição, se tivesse tempo iria ainda à cidade universitária, curiosamente, pensava, enquanto traçava o trajecto, nunca tivera curiosidade de em Coimbra dar uma saltada à faculdade de matemática, onde os frescos do Mestre se escondiam na modéstia da divulgação da sua existência, iria em dia próximo, se ficasse entusiasmada com a visita de amanhã, decidiu. Era um dia em cheio, como há muito imaginara, o pior era a chuva, mas estava decidida como sempre ( nós sabemos, não temos duvida), e ainda teria tempo de apanhar o Intercidades para Coimbra, com tempo para ir ás aulas.

Sofia, hoje ao final da manhã, vou a Lisboa. Não deu justificação, isso queria dizer, não incomodar, nada de telemóveis, quando assim era ia por vontade própria rever a sua Cidade. Na verdade Joaquim tinha uma paixão por Mestre Almada, e andava distraído, lera em jornal que a exposição encerrava, naquele dia, e sendo desenhos da fase espanhola, tinha curiosidade acrescida, porque era a fase que menos conhecia. Marque-me comboio de ida e volta, ida, o próximo, volta ás dezanove, De comboio? Vai de comboio, senhor engenheiro? Sim Sofia, se fizer favor. Andava cansado, e ultimamente dava para se ausentar enquanto conduzia, pensava que era o embalar da chuva e do pára-brisas, mas a verdade é que acordava em sobressalto no meio da estrada e tinha respirado vários sustos. Ainda ontem, recordava, tinha percebido que não chegara a sua hora. Despertara da sua ausência, com apito estridente de um enorme camião que se colocara à frente para pega de Vida, mas um reflexo de sobrevivência dizia-lhe que não chegara a hora. Chegado a casa, aconchegado em folha branca do seu caderno, escrevera: Hoje vi a morte, numa tempestade de reflexos. O que nos separa da Vida e da Morte é uma ínfima fracção de destino a que só damos valor no momento em que o turbilhão da existência nos foge do olhar. Renascemos todos os dias a cada fracção que o destino nos concede. Somos um ponto de um caminho que julgamos dirigir, mas que se constrói em Jogo de dados. Hoje, desenho palavras porque os dados olharam para mim e eu sinto-me impotente e esmagado pela incerteza do Existir.
Tinha uma relação de serenidade com a morte, não a temia, sabia o quanto é frágil e imprevista a relação da vida com o individuo, estava preparado para ela, desde o momento, em que assistira no ver, a imagem de uma criança a chorar em convulsão, a morte de uma formiga que pisara. Esta imagem, este desenho de vida, tinha transformado a sua. Percebeu o quanto é efémera a vida quando olhada de forma isolada e individual, o quanto somos ínfimos, comparados com a grandeza do Universo. Imaginou-se ser minúsculo, como a formiga, sujeito ao acaso de uma pisadela de uma entidade infinitamente maior do que ele, e essa mesma individualidade, pisada por acaso outro, por ser, infinitamente maior que o outro, sentiu-se átomo da existência, imaginou as células que vivem dentro de si, com ciclos de vida e morte, imaginou-se célula de ser maior, enfim um emaranhado de pensamentos que o colocaram frente à serenidade e à paz interior. Percebeu como era minúscula a sua individualidade, e sentiu-se grande por existir, mas sempre pronto para deixar de o ser.